mercredi 4 février 2009

A Guerra do Iraque e o Paradigma Emergente


"Que papel para o Direito Internacional?

O Direito Internacional tradicional que caracterizava a paz vestefaliana e o Direito Internacional actual que pode designado por comunitário, não são mutuamente excludentes. O primeiro coexiste numa interacção ambígua com o segundo. Como refere o professor Salcedo (2000), o Direito Internacional está continuamente submetido a influências conflituosas. colocado indistintamente, entre uma concepção estática, baseada em valores como a integridade territorial dos estados soberanos e uma concepção dinâmica, centrada nos valores humanitários supraestatais. Estas duas concepções se, por vezes, conviviam polidamente, agora colidem e começa a surgir a erosão mais acentuada da primeira. Esta erosão conduz a leituras, por vezes extremas, das funções e aplicabilidade do Direito Internacional, i. e., entre o senso-comum realista e a representação da anarquia internacional e entre ordens de valores supra-positivos. Uma nova condição do marco de ruptura com o Direito Internacional comunitário, é a nova forma de regulação da sociedade internacional através da hipótese do Imperium. Para os que a defendem, estaria no “chess-board” a construção de um estado de coisas estático e perfeitamente moldável – a instrumental construção do Imperium. A partir do ponto de ruptura que seria a concretização dessa hipótese, produzir-se-ia um novo sistema de hegemonia global norte americana, em que seriam estabelecidas e impostas regras ao resto do mundo de forma discricionária, i. e., de forma continuadamente unilateral. É como Imperium que aquela nação, abdicaria do Direito Internacional comunitário porque, para o Imperium, já não existiria sistema internacional ou República Global, ou seja, o Imperium outorgar-se-ia o direito de ser o único a deter uma soberania inviolável. Neste sentido, a reflexão de Leander (2002) acerca dos Estados, como a maior fonte de violência e opressão, levanta a questão da falência da representação ideal do Estado Ocidental democrático, onde «'real states' are anything but ideal and democratic?».

Cabe perguntar o que permanece e o que muda no Direito Internacional actual à luz desta hipótese. Uma comunidade internacional é um “património comum de valores, princípios e procedimentos” (Salcedo, 2000: 9), o que significa, que os princípios vestefalianos do Estado continuam a compor uma funcionalidade edificadora da ordem internacional em simultâneo com princípios comunitários posteriores consignados na Declaração dos Direitos Humanos. Coexistem contemporaneamente dois tipos de Direito Internacional tal como os dois modelos de ordem a partir da Carta - o tradicional relacional e o comunitário ou institucional. No primeiro, o Direito Internacional estrutura-se a partir da legitimação soberana de cada Estado, em que a violência do poder é um uso comum incondicionado e discricionário enquanto que no segundo, o poder é reprimido e condicionado de forma institucionalizada e comunitária. Esta oposição estrutura desde há muito, os dois tipos de Direito Internacional nas Relações Internacionais. Como se depreende, as mudanças que se têm evidenciado na transição de um tipo de Direito para outro, são resultado de três processos distintos – a crescente institucionalização da comunidade internacional apoiadas no aperfeiçoamento das Organizações Internacionais, a socialização do Direito Internacional enquanto regulador de relações internacionais agregadas e uma ordem internacional de cariz mais humanitário ao ampliar para além dos Estados a sua esfera de regulação. Permanece no entanto, a fragilidade de um ordenamento jurídico supranacional dependente dos Estados, o que de um ponto de vista hermenêutico desacredita a capacidade do legalismo internacional para se afirmar.

Se considerarmos neste contexto, a designada Guerra do Iraque, então o pós-11 de Setembro coloca em causa a estabilidade dos princípios basilares que regem um Estado de direito e enquadra-se, no meu entender, no tipo de Direito com traços vestefalianos de lógica realista. A facilidade com que se pode alternar a jurisdição penal com a militar para punir determinados actos à revelia do Direito Internacional por parte dos Estados mais poderosos, equivale em termos éticos, ao uso da violência e de acções terroristas para impor convicções - ao interpretar regras gerais e universais para as conformar a um poder particular. A lacuna que supõe, uma fraca afirmação da comunidade internacional para a coesão de valores comuns sobre resoluções de conflitos de interesses, de direito de cooperação, de consolidação das regras universais da humanidade e de discursos legitimados pelos conteúdos do Direito Internacional, tem fortes consequências. A desigualdade soberana entre Estados, que emergiu da crise do Iraque através do “direito de intervenção” ou da “guerra preventiva” (Pureza, 2002) contraria o multilateralismo do Direito Internacional comunitário. Também, o modo como a Guerra do Iraque se concretizou numa instância mais visível, veio fragilizar o equilíbrio que se mantinha até então, entre o conceito de liberdade e o conceito de segurança a nível internacional, comprometendo mesmo, a relação entre eles: a liberdade decresce a favor do aumento da segurança. Esta correlação negativa influi sobre o sentimento de ingovernabilidade, agudizando também, a instabilidade da sociedade internacional ao restringir a liberdade dos indivíduos. É oportuno apontar um novo papel para o Direito Internacional “como regulador das relações internacionais” perante mudanças tão acentuadas na comunidade internacional. É na tensão entre os princípios da sociedade internacional e da comunidade internacional que se pode definir esse novo papel. Porque embora a comunidade apresente uma redefinição de valores, do estar para o ser em relação à sociedade, ambas partilham valores consensuais acerca das regras de conduta dos diversos actores da lógica de acção das relações internacionais, ou seja, o oposto à ilicitude e à anarquia vestefaliana. Neste sentido a solidificação das duas principais dimensões do Direito Internacional - sistema de regras e discurso legitimador. A primeira dimensão apresenta três vectores jurídicos de forma e de estrutura, a saber: separação clara das obrigações bilaterais das obrigações para com a Comunidade Internacional, distinção entre delitos comuns e crimes internacionais e a nível interno do Direito Internacional uma linha divisória entre normas comuns e normas imperativas. A primeira dimensão revela a chamada ordem pública internacional. A segunda dimensão, a do discurso legitimador ou do intrínseco conteúdo do Direito Internacional inscreve nitidamente a verdadeira lógica do espírito da comunidade. Para que se concretize o novo papel do Direito internacional ele não deve sair da moldura atrás referida, i. e., de uma permanente referência institucional e multilateral que não aceita ou permite, a solidificação da nova ordem paralela que a hipótese do Imperium aponta – o papel do Direito Internacional subordinado à reciprocidade em substituição da equidade, subordinado à neutralidade em substituição da legitimidade e subordinado à exclusividade da soberania em substituição da comunidade internacional. De facto a conciliação entre o princípio da igualdade soberana e o princípio da comunidade implicaria uma fundação desse papel."

in: http://www.ciari.org/investigacao/guerra_iraque_paradigma_emergente.pdf

Aucun commentaire:

Enregistrer un commentaire